quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

HUMANIDADE DESUMANA?
por
Sandro de Souza Mesquita

Muitos são os casos hoje em dia, e ao longo da história da humanidade, de crimes aterradores, dotados de uma requintada crueldade, da maior desvaloração e reprovação social, qualificados no Direito Penal Brasileiro como crimes hediondos, ou seja, aos quais não cabe graça, indulto ou fiança.
Desde a mais remota antiguidade, a espécie humana se dispõe a atos cruéis para com seu semelhante. Ocorre que, ao longo do tempo o conceito de o que é considerado cruel vem se alterando. Os gregos não consideravam a execução de um indivíduo como um ato cruel, mesmo que para isso tenha sido usado o envenenamento (como o caso de Sócrates) ou esquartejamento; nem para os romanos era considerada cruel a morte por crucificação (como o caso de Jesus Cristo), ou o ataque de animais ferozes (como no caso dos primeiros cristãos); na Idade Média, a morte por enforcamento, ou degola, era frequente, e inclusive se tornava um ato público, com extensa audiência; houve época em que o ‘olho por olho, dente por dente’ era a regra, ou seja, o responsável por determinado ato que causou dano a outrem, deveria sofrer castigo por meio de sofrimento idêntico.
Percebemos no percurso da história que essas atitudes foram sendo reavaliadas, e, somente no séc. XVI, determinações legais afastaram os suplícios como forma de punição por crimes cometidos.
Hodiernamente, a jurisprudência, principalmente européia, procura conceituar os tratamentos desumanos e os degradantes. A Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH), por sua vez, distinguiu os tratamentos cruéis, desumanos e/ou degradantes, da tortura.
A tortura subentende a obtenção de algum objetivo específico, como a confissão, através da ação contra a integridade física de terceiros; o tratamento degradante tem o objetivo de fazer alguém agir contra sua vontade, mediante a humilhação pública ou particular; o tratamento desumano – este é o que nos mais importa nesse estudo - por sua vez, seria uma espécie de tratamento degradante que, por injustificável que é, provoca sofrimento mental ou físico, impondo ao padecente esforço além dos limites razoáveis para suportá-los.
Até aqui, mencionamos apenas casos de desumanidade ligados à punição por crimes, exercidos pelo poder governante - do Estado. Mas não podemos esquecer que, mesmo a mando de um poder ‘superior’, o ato da tortura, da humilhação, do mal físico e psicológico, foi efetivamente exercido por um ser humano.
A tais atos convencionou-se chamar de ‘desumanos’ pois, apesar de imbuídos de uma animalidade cruel, são cometidos por pessoas comuns como as que cruzamos todos os dias no semáforo, no balcão da padaria, na fila do elevador.
Lembramos, ainda com um alto grau de comoção, do martírio da menina Isabela Nardoni, morta em 2008, ao ser atirada pela janela do sexto andar do edifício onde morava seu pai – diga-se de passagem, o autor do crime – não sem antes passar por asfixia ainda dentro do apartamento. Lembramos ainda o caso do pequeno João Hélio, também contando seis anos de idade, que faleceu devido a ferimentos e perda de massa encefálica, após ter sido arrastado por cerca de sete quilômetros preso pelo cinto de segurança no carro de seus pais, que fora roubado. 
Estes são apenas dois dos casos mais recentes, ainda vivos na memória dos cidadãos deste país. Porém, desafortunadamente, a lista ainda conta com crimes mais longínquos no tempo, como: Eloá Cristina, Celso Daniel, Glauco Vilas Boas, Daniella Perez, em um sem fim de mortes.
O dicionário Michaelis – versão online – indica que o vocábulo desumano se refere àquilo “que não é humano”, “que denota crueldade”, “bestial, cruel, feroz”.
Identificamos aqui a separação do que é humano, e do que é cruel e feroz. Dostoievski, em Crime e Castigo (1998), já dizia: “Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas.”
É, portanto, de se questionar: o que faz um ato realizado por um ser humano ser considerado ‘des’humano? O que afasta o ser humano da sua pretensa qualidade de humano, de sua ‘humanidade’? É o que nosso estudo pretende revelar; quando não, ao menos, deitar luz sobre o tema para futuras análises mais ilustradas.
Para tanto, é necessário que façamos um salto temporal até a Antiguidade Clássica, quando filósofos discutiam acerca da razão da existência humana.  
Aristóteles (1999) refuta a tese de Platão, baseada em modelo de índole matemática, de que a realidade concreta seja somente uma cópia de modelos de natureza incorpórea e eterna: as idéias. Para Platão, toda a realidade seria composta de um número limitado de formas originais às quais denominou de ideias.
Ele, Aristóteles, se apóia na sua teoria da forma e substância, conceitos esses que invertem a visão platônica de um ‘mundo das ideias’.  Acreditava o filósofo, como ensina Gaarder (1991), em imagens primordiais, que dariam forma a tudo que existe na natureza.
Para esse filósofo, a única realidade é a constituída por seres concretos e mutáveis, apercebidos pelo conhecimento empírico. Por este método é que a ciência consegue estabelecer definições sobre a essência da universalidade.
Aristóteles (1999) indica que o conceito universal acerca do real é resultado da atividade empírica do intelecto. A estruturação do universal se dá mediante a estruturação do objeto particular, a partir da experimentação.
Assim, a título de exemplo, o conceito universal de ‘pássaro’ vem da observação prática de vários elementos materiais reais que detém as características próprias do conceito singular, empírico, sobre cada pássaro.


“A estrutura inerente aos próprios objetos: a estrutura básica comum aos diferentes pássaros existentes é que estaria expressa, universalmente, no conceito pássaro.” (ARISTÓTELES, 1999, p. 22).

Some-se a isso que Aristóteles (1999), no seu estudo acerca da Teologia, faz distinção entre ‘aquilo que é’ e ‘aquilo que pode vir a ser’, sob a forma de sua teoria conhecida como ‘Ato e Potência’. Isso significa dizer, conforme Gaarder (1991), que todas as coisas que têm um princípio, uma origem essencial, são dotadas de potência, ou seja, a possibilidade de transformar-se em outra coisa, sendo essa ‘outra coisa’, o ato. Em verdade, o ato é o estado final da potência, o resultado da transição ‘daquilo que é’ no que ‘pode vir a ser’.

“o sujeito subjacente seria a matéria, que, no contexto da Metafísica vem a ser a matéria primeira, uma realidade de todo indefinida.” (JUNGMANN, 2009, s/n)


A diferença de pensamento entre os dois filósofos repise-se, é que Aristóteles só admite a realidade enquanto criada pelo intelecto humano, resultado da experiência prática sensorial.
Como opina Jungmann (2009), esse pensamento nos dirige à compreensão das coisas particulares do mundo. O caráter biológico da teoria Aristotélica indica que as coisas vivas e naturais são substâncias paradigmáticas, pois se compõem de matéria e substância.
Aristóteles, como ensina Jungmann (2009), explora a distinção entre os conceitos de forma e realidade, que são produzidos a partir da junção entre substância e forma. Segundo Gaarder (1991), a primeira é o modo como se compõe tudo que existe, a segunda são as características materiais peculiares de cada coisa.
 Voltando ao exemplo do pássaro, podemos definir que a forma de um pássaro são as penas, o bico, as asas, e assim por diante. Como ensinou Aristóteles, os pássaros não são todos iguais, mas têm em comum algo que é igual em todos os pássaros, isso é a forma. Enquanto que a essência do pássaro é o canto, o vôo etc. Significa tudo que é individual.
“Mas qual é, então, a função própria do homem? O que o distingue? Que tipo de vida, ou atividade, estabelece essa distinção? – questiona João Hobuss (2002), em sua obra Eudaimonia e autossuficiência em Aristóteles. Ele mesmo responde:


“ A vida em si, é algo de comum com os vegetais, mas isto certamente não é peculiar apenas ao homem; a vida referente à nutrição e a relativa ao crescimento, devem ser, da mesma forma, deixadas de lado. A vida da percepção parece ser comum também ao cavalo, ao boi, aos animais em geral; resta então uma certa vida prática da parte racional da alma [...] no sentido de estar submetida à razão [...] de possuir a razão e o exercício do pensamento” (HOBBUS, 2002, p. 92).


De acordo com a doutrina metafísica de Aristóteles, a essência humana, ou seja, aquilo que é intrínseco e exclusivo do humano é a razão, a racionalidade. O homem, biologicamente, se situa dentro do reino animal – porém, é um animal racional.
Ainda de acordo com Hobbus (2002), a função do homem, ou a essência humana, consiste na atividade da alma de acordo com a razão, baseada em um princípio racional.
Importante repassar que razão é um conceito relacionado à atividade, não simplesmente um ato contemplativo sobre a realidade. É baseado no empirismo, e afastado dos conceitos preconcebidos, dos costumes, das tradições etc. Aristóteles aponta que a razão só é obtida mediante a ação moral e, enquanto tal, tendente ao bem.
Quando falamos de atos ‘desumanos’, portanto, estamos falando de atos afastados da qualidade essencial do humano, qual seja, a racionalidade, a capacidade essencialmente humana de poder agir conforme suas escolhas, seu livre arbítrio, desde que este seja consciente e voltado para a moral e ética.
Atrocidades como as mencionadas no princípio deste texto só acontecem quando o autor daqueles crimes – um ser humano – perde, ainda que momentaneamente, sua racionalidade, sua capacidade de avaliar o bem e o mal, o certo e o errado, e age instintiva e inconscientemente.










REFERÊNCIAS:

COLEÇÃO OS PENSADORES. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1987

DESUMANO, IN: Dicionário Michaelis Online. Brasil: Melhoramentos, 2009. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=desumano
- Acesso em 29 out. 2013

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1987

GAARDER, J. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia das Letras, 1995

HOBUSS, J. Eudaimonia e autossuficiência em Aristóteles. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2002

JUNGMANN, R. Substância, matéria e essência na metafísica de Aristóteles. Ano 5. fasc. XI. v. 6. Jul-Dez. 2009

MADJAROF, R. ARISTÓTELES. Disponível em  www.mundodosfilosofos.com.br/
aristoteles.htm#ixzz2iaUcPvca – Acessado em 14 de outubro de 2013